Na terça-feira (25), Humberto Werneck lançou seu O Pai dos
Burros – dicionário de lugares-comuns e frases feitas (Arquipélago Editorial,
2009). Dono de um dos grandes textos da imprensa brasileira, ele passou quase
40 anos colecionando os clichês que sujam as páginas de jornais, revistas,
livros. Aquelas palavras que, de tanto ouvi-las, são as primeiras a aparecer na
nossa cabeça, na ponta dos nossos dedos. É automático. Chegam antes do
pensamento. De certo modo, são as palavras que nos libertam para não pensar.
Foram ditas muitas vezes antes, não causarão nenhuma reação inesperada. Não
provocarão nada, nem de bom, nem de ruim. Tanto faz dizer que "a vida
imita a arte" ou que "o futebol é uma caixinha de surpresas". É
um dizer que nada muda, é um imenso nada.
Por que então os clichês são tão populares? Porque são
seguros, é o que disseram gente brilhante como H.L. Mencken e Hannah Arendt. Ao
repetir uma ideia velha, o que foi dito e redito por tantos antes de nós, nada
sai do nosso controle. Também nada acontece. Uma nova ideia é sempre um risco,
não sabemos aonde ela vai nos levar. E, na falta de ousadia, o que nos sobra é
medo.
Escrevi uma pequena matéria sobre o dicionário de clichês na
edição impressa desta semana. E li todas as 208 páginas, os 4.640 clichês, para
conhecer as palavras das quais deveria fugir. Desde então, adquiri um incômodo
que não sai de mim. Ao colecionar lugares-comuns, Werneck espera nos instigar a
pensar antes de sair escrevendo – ou falando. Se o jogo de palavras vier muito
fácil, é porque já foi dito tantas vezes que abriu um escaninho no nosso
cérebro. Basta apertar uma tecla invisível e sai de lá pronto. Não custa nada,
nem mesmo um esforço mínimo. "O tempo é o senhor da razão", "a
esperança é a última que morre", "nunca antes na história deste
país"... os clichês estão sempre sendo produzidos, até mesmo como
estratégia de marketing.
Há os clichês coletivos, que estão no dicionário do Werneck,
e acredito que cada um de nós tem um repertório próprio. Expressões que
repetimos nos nossos textos, nos nossos discursos, na nossa autodefesa
permanente – não apenas diante de outros, mas também no banco dos réus do nosso
tribunal pessoal. Ideias que já testamos e sabemos que tipo de reação provocam,
um repertório confiável de velhos truques.
Criamos nosso próprio mundo de palavras e de pensamentos. Na
busca de um lugar seguro, não copiamos apenas os outros, mas a nós mesmos,
infinitas vezes. Se é fácil rir das frases feitas a que a maioria se agarra
para não mergulhar no desconhecido, também é fácil observar que muitos dos que
riem não ousam ir além dos comportamentos clichês em sua própria vida.
Foi seguindo o fio deste raciocínio que fui me tornando
incomodada e um pouco melancólica. Tento policiar-me para escrever sem usar
fórmulas, ainda que minhas. Forçar-me a buscar jeitos novos, ser uma parte
diferente de mim em cada texto. Nem sempre consigo. Mas tento me obrigar a
tentar. Depois de 21 anos escrevendo na imprensa, é fácil ser uma cópia de mim
mesma.
Sei disso e tento manter-me inquieta. Quando vou me tornando
um bichinho, enrodilhada em mim mesma, sou também eu que me cutuco com um
pedaço de pau para sair da toca. Conforto é bom, mas é também uma não-ação. Sei
que apenas chegando cada vez mais perto de mim mesma é que posso alcançar a
possibilidade de ser outra. E de fazer do velho em mim algo novo.
Numa entrevista a Clarice Lispector, o psicanalista Hélio
Pellegrino disse algo que me cutucou com delicadeza, mas bem fundo. Sempre que
leio uma entrevista ou um texto dele, fico pensando como alguém pode dizer algo
tão elaborado com tanta simplicidade, numa resposta oral a uma pergunta que não
esperava. E com tanta generosidade para aquele que o escuta. Suas palavras não
machucam porque não foram pensadas para ferir. Com a ponta dos dedos, elas
acariciam. Foram pronunciadas para dar uma chance ao interlocutor, leitor. São
como uma mão que alcança – e não um pé que esmaga. Vivemos num mundo em que as
pessoas se sentem mais seguras quando se tornam pés que esmagam. A mão que
alcança exige mais coragem, porque alcançar é sempre um risco – e esmagar tem
um final previsível.
O Hélio disse, lá pelas tantas: "Escrever e criar
constituem, para mim, uma experiência radical de nascimento. A gente, no fundo,
tem medo de nascer, pois nascer é saber-se vivo – e, como tal, exposto à
morte". Lembrei da frase e fui reler essa entrevista por causa dos
clichês. Pareceu-me, então, que o esforço do Werneck ganhou um sentido mais
amplo. Ele tenta, com seu pequeno dicionário, seu "burrinho", como
ele diz, nos chamar a atenção para as inúmeras possibilidades de nascimentos
que perdemos quando repetimos um lugar-comum em vez de uma combinação de
palavras que só nós podemos fazer.
Não porque somos melhores que os outros, mas porque a
singularidade do nosso olhar é só nossa. Como diz o poeta, "se eu morrer,
morre comigo um certo modo de ver". Ou, na frase genial do menino de 8
anos que li na seção "Quem diria" da Revista da Folha do último
domingo (23): "Pai, tô em extinção. Só tem um Guilherme Ribeiro Kierpel no
mundo". Ele descobria ali, depois de uma aula de ciências, a singularidade
do que era. Um dia pode descobrir que, para alcançá-la em sua integridade,
precisará de muita coragem. Terá de resistir ao conforto de uma vida de
lugar-comum.
Clichês são letra morta. Palavras que nasceram luminosas e
morreram pela repetição, já que a morte de uma palavra é o seu esvaziamento de
sentido. Agarrar-se aos lugares-comuns para não ousar arriscar-se ao novo é
matar a possibilidade antes de ela existir. É matar-se um pouco a cada dia, ao
matar nossa expressão no mundo. De homens, nos reduzimos a papagaios. Como
naquelas reuniões de empresa em que as pessoas se digladiam numa guerra de
jargões coorporativos que nada dizem delas, mas fingem dizer. Acreditam que
assim mantêm o emprego, seu diminuto lugar no mundo. Se os clichês forem
pronunciados em inglês, mais seguras se sentem.
O mundo das frases feitas serve também para isso, para não
deixar o novo entrar. Quem não conhece o manual – e é preciso um certo tempo
para descobrir que os jargões só são cascas de palavras e não palavras –, é
colocado do lado de fora da linguagem. Exilado, não ameaça ninguém – nem o
funcionamento do todo – com as palavras mais subversivas e ameaçadoras para
este mundo: as próprias.
Quando nos expressamos por palavras, temos sempre a
possibilidade de nascer. E se renunciamos ao nascimento, ao trocar a
possibilidade do novo pelos chavões, aceitamos a morte antes de viver? Fiquei
pensando nisso. Parece-me que os lugares-comuns vão muito além das palavras. A
gente pode transformar nossa vida inteira num clichê. Não basta apenas pensar
antes de escrever, na tentativa de criar algo nosso. É preciso pensar para
viver algo nosso – antes de repetir a vida de outros.
Do mesmo modo que é mais fácil botar no mundo o primeiro
chavão que nos vem à cabeça, também é mais fácil – e mais aceito – viver
segundo os clichês da nossa família, sociedade, época. Penso que a maioria de
nós vai vivendo e repetindo velhas vidas que aparentemente já deram certo e não
incomodam ninguém. O que seria o clichê de uma vida de classe média de um
brasileiro de hoje?
Vou arriscar. Estudar num colégio privado desde a creche.
Começar a falar inglês ainda bebê. Alguma coisa tipo ballet ou artes marciais
ou aulas de circo. Em algum momento do ensino médio ir para a Disney com a
turma ou até fazer um intercâmbio para melhorar o inglês. Ingressar na
universidade. Antes ou depois da faculdade morar um tempo em Londres. Em algum
momento tocar saxofone ou algum outro instrumento que lembra bares boêmios, com
atmosfera noir, de uma vida que leu nos livros e/ou viu nos filmes. Produzir
alguma coisa de cinema de documentário e/ou criar um blog onde finalmente pode
expressar seu verdadeiro eu. Rebelar-se um pouco e enfim trabalhar, reclamar do
trabalho e fazer umas baladas com os colegas de trabalho e os velhos amigos da
faculdade. Descobrir que ser adulto é aceitar a vida como ela é. Casar, comprar
apartamento, ter um ou dois filhos, entender de vinhos e fazer viagens de
férias bacanas para a Europa, Estados Unidos ou países exóticos da Ásia e mais
recentemente também da África. Não sei bem como continua.
Não é ruim ou errado, não se trata disso. Pode até ser muito
rico, se for vivido como algo próprio, segundo a singularidade de quem vive,
não segundo a ditadura do clichê do que deve ser uma vida de uma pessoa de
classe média do início do terceiro milênio. Parece-me, porém, que não pensamos
muito antes de vivermos uma vida lugar-comum. Não pensamos nada quando
acordamos pela manhã e seguimos até a noite uma rotina instituída por quem? Ah,
sim, por nós.
Não pensamos nem mesmo que nada impede que façamos tudo
diferente. Apesar da pilha de empecilhos-clichês que temos na ponta da língua
para ocultar nosso medo de arriscar, se formos pensar com a necessária
honestidade, a vida está mesmo nas nossas mãos.
Podemos viver um lugar-comum, que nos carrega para a zona de
conforto e não ofende nem a família, nem o patrão, nem o Estado. E podemos
tentar viver a nossa vida, a vida que só nós podemos viver. A vida que nos
transforma desde sempre, como descobriu o menino de 8 anos, em alguém em
extinção.
E com isso não falo de uma vida povoada de aventuras
grandiosas, falo de pequenas aventuras que podem ser vividas até mesmo no sofá
da sala, sem acompanhamento de violinos, sem testemunhas, sem reconhecimento
público. A vida que só nós podemos viver, aquela que busca a singularidade do
que é nosso, é aquela que passamos a vida buscando.
É também a vida sujeita ao erro, ao imprevisto, ao
descontrole. De novo, a entrevista de Hélio Pellegrino a Clarice Lispector.
Ela, ainda bem, não tenta arrancar nada de ninguém. Apenas pergunta, suavemente:
"Hélio, é bom viver, não é?". Ele responde, um vento avançando pelas
nossas crenças: "Viver, essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. Quem
joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria consiste em aceitarmos que
perder também faz parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos algo
extremamente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder,
sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei sempre as mãos vazias.
Quem não sabe perder, acumula ferrugem nos olhos, e se torna cego – cego de
rancor. Quando a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda humildade, as
regras do jogo existencial, viver se torna mais do que bom – se torna
fascinante. Viver bem é consumir-se, é queimar os carvões do tempo que nos
constitui. Somos feitos de tempo, e isso significa: somos passagem, somos
movimento sem trégua, finitude. A cota de eternidade que nos cabe está
encravada no tempo. É preciso garimpá-la, com incessante coragem, para que o
gosto do seu ouro possa fulgir em nosso lábio. Se assim acontece, somos alegres
e bons, e a nossa vida tem sentido".
A vida que se vive para longe dos clichês não tem garantias.
Tem vida. Tudo o que a vida que se vive para longe dos clichês nos oferece é
isso, vida apenas.
Quando eu tinha 13 anos, de repente percebi que a vida que
me esperava era um interminável lugar-comum. Terminar o colégio, fazer
faculdade etc etc. A revelação teve um enorme impacto sobre mim. Me fechei no
quarto, passei um tempo sem falar com minhas amigas, com ninguém. A falta de
sentido do sentido da minha vida me esmagava. Decidi então que deixaria o
colégio. Pararia tudo. Não pela convicção de que não deveria estudar, mas
porque eu precisava fazer algo para interromper o fluxo inexorável rumo a uma
vida feita de uma sucessão de frases feitas.
Parar tudo era um ato desesperado. E de uma lucidez
assustadora para alguém de 13 anos. Anunciei a decisão aos meus pais. E disse
que iria a Campinas falar com o meu irmão sobre o que sentia. Sempre fui
enormemente ligada a esse irmão, que foi quem me ensinou a escrever – graças a
isso escrevo como canhota, embora seja destra. Na época, ele estudava Física na
Unicamp.
Peguei um ônibus em Ijuí, na minha primeira viagem sozinha,
e desembarquei em São Paulo. O Zé estava lá, me esperando – e disfarçando
bastante bem a enorme encrenca que representava o advento da irmã caçula em sua
rotina de estudante pobre. Embarcamos num ônibus para Campinas e eu vivi a sua
vida por uns dias. Ele morava numa garagem de carro, nos fundos de uma casa. Em
vez do carro, tinha ele. O chão era de terra, sua cama, que passou a ser a
minha cama, era um colchão em cima de uns tijolos, suas poucas roupas eram
guardadas num caixote de madeira, o único móvel era uma escrivaninha onde ele
estudava das 5h de uma madrugada até à 1h da seguinte, com interrupção para as
aulas que ele achava que valiam a pena e para eventuais reuniões de política
estudantil. A mesma rotina que ele havia iniciado com apenas 15 anos. Naquele
tempo, sem saber por onde começar, começou lendo enciclopédias. Mas esta é uma
outra história.
Na primeira madrugada que passei na sua garagem-casa,
acordei e o vi ali, debruçado sobre os livros, os pés na terra, tudo muito
pobre e muito frio. Além do almoço no restaurante universitário, sua dieta se
limitava a bananas, pão e leite. Meu coração se apertou de amor pela grandeza
daquele pouco mais que um menino, solitário diante do parapeito do mundo.
Descobri ali, assistindo àquela cena enquanto fingia dormir, que o Zé estava
obcecado em se tornar não apenas o melhor físico que podia ser, mas o melhor
homem que podia ser. Estava em busca da vida que só ele poderia criar para si
mesmo.
Voltei para casa. E muito aconteceu desde então. Semanas
atrás, quando escrevi uma coluna sobre nosso afastamento do universo (O céu nos
espera), o Zé me mandou um email sobre sua "visão cosmológica".
Escreveu na linguagem informal de um irmão escrevendo um email para a irmã:
"Somos um acidente evolutivo, ou melhor, apenas um dos inúmeros (sub-)
produtos. A consciência não tem nada de especial (a não ser para nós, é claro).
Nossa posição temporal e geográfica no universo é totalmente irrelevante. A
contrapartida é que somos capazes de perceber nossa existência (acredito que,
em outros níveis, outros animais complexos também conseguem). A partir daí, o
mundo, tal qual percebemos, é TUDO o que temos (e teremos!). Portanto, estamos
no centro do NOSSO universo. E isso coincide com as nossas adaptações
evolutivas. Assim, nossa cosmologia é encontrar um ponto de contato entre essas
duas realidades: a externa, de total irrelevância, e a interna, onde somos
centrais (tanto que nosso universo desaparece com a nossa morte). Por isso a
religião (que resolve esse problema) é – a meu ver – uma evolução natural da
nossa cultura, consequência natural da nossa evolução biológica (esse é o
pensamento, mais ou menos, entre outros, do Daniel Dennett, em Breaking the
Spell). Somos "believers" (crentes). O que eu acho mais interessante
no ponto de vista agnóstico (ou ateu) é que, diante dessas percepções, sabemos
que somos tudo o que temos (como indivíduo ou como espécie) e, portanto, temos
a liberdade e a responsabilidade de definirmos o que queremos ser (como
indivíduo e como espécie). A construção do nosso mundo e para onde vamos é
nossa responsabilidade. Acho que não pode haver maior riqueza em uma vida do
que essa liberdade".
Era um convite para tomarmos um vinho e falarmos sobre a vida.
Como conversamos lá atrás, comendo banana com leite. Agora, nós dois podemos
pagar por um vinho que não dê dor de cabeça no dia seguinte. E temos um tapete
para pisar. Mas nossa inquietação segue latejando, às vezes doendo muito – e
nos carregando para vários lugares. Sempre em busca. E sempre usando qualquer
pretexto para buscar: uma palavra, um livro, um filme, uma pessoa, uma traição,
um esquecimento, uma solidão. Qualquer pedaço de madeira em que possamos nos
agarrar para não sermos afogados pelo oceano de comportamentos clichês, para
que nossa ânsia de vida nos leve sempre a viver. Com todas as dores, as fomes,
as perdas e também os ganhos que fazem parte de uma vida não escrita. Nenhum de
nós quer ser reduzido a um personagem de si mesmo, ainda que seja um bom
personagem.
Foi até aqui que o dicionário de clichês do Humberto Werneck
me levou. Não sei se faz sentido para mais alguém além de mim, mas no fundo
sempre escrevemos para nós mesmos. Para, como disse Hélio Pellegrino, poder
nascer. E descobrir-se vivo, radicalmente vivo.
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